Autora: Coral Herrera
Gómez
Traductora: Deborah Delage
Traduzido para o português do link original:
O amor romântico
é a ferramenta mais potente para controlar e subjugar as mulheres,
especialmente nos países onde elas são cidadãs de pleno direito e onde não são,
do ponto de vista legal, propriedade de ninguém. Muitos sabem que combinar o afeto
com o abuso em relação às mulheres serve para destruir sua autoestima e causar dependência, e por
isso usam o binômio abuso-afeto para que elas se apaixonem perdidamente, e
eles, assim, possam domá-las.
Um exemplo é
Kalimán, cafetão mexicano que explica como consegue prostituir suas mulheres:
escolhe as mais pobres e necessitadas, de preferência aquelas que desejam
deixar o inferno em que vivem em casa, ou aquelas que precisam urgentemente de
amor, porque estão socialmente isoladas. Os cafetões seguem seu roteiro perfeitamente: primeiro as enchem de amor,
atenção e presentes durante dois meses, fazendo-as acreditar que sãoa mulher de
sua vida e que sempre terão dinheiro disponível para suas necessidades e caprichos. Em seguida, colocam-nas
por alguns dias num bordel, de modo que as moças "lhes façam terapia";
se resistem, batem o pé, ficam com raiva, é melhor deixar que se recuperem sozinhas. Nunca se
deve pedir-lhes perdão. É necessário que sofram até que seu orgulho se
desmorone e caiam de joelhos, aceitando a derrota. O macho deve ficar firme,
mostrar seu desprezo, ir embora em momentos de grande raiva, e nunca ter pena das
lágrimas de sua mulher.
Esta técnica garante que elas atendam a seus desejos e
trabalhem para eles na rua ou em prostíbulos; a maioria delas não têm para onde
ir e, segundo eles, uma vez que experimentam o luxo, não querem voltar para a pobreza.
Esta história de
terror é muito comum em todo o mundo. Não só os cafetões, mas também inúmeros
namorados e maridos tratam as mulheres como éguas selvagens que precisam ser domesticadas
para serem fiéis, submissas e obedientes.
Muitos ainda acreditam que as mulheres nasceram para servir e amar aos homens. E muitas de nós mulheres também ainda
acreditamos nisso.
"Por
amor", nós, mulheres, nos apegamos a situações de violência, abuso e exploração.
"Por amor" nos juntamos a tipos horríveis que, a princípio, parecem
príncipes encantados, mas que depois nos
enganam, tiram vantagem de nós, ou vivem às nossas custas. "Por amor"
aguentamos insultos, violência, desprezo. Somos capazes de nos humilhar "por amor", ao mesmo tempo em que
nos orgulhamos de nossa intensa capacidade de amar. "Por amor" nos
sacrificamos, nos deixamos anular, perdemos nossa liberdade, perdemos nossas
redes sociais e afetivas. "Por amor" abandonamos nossos sonhos e
objetivos, "por amor" competimos com outras mulheres e nos
tornamos inimigas para sempre, "por
amor" deixamos tudo ...
Quando este
"amor" chega, nos torna mulheres de verdade, nos dignifica, nos faz nos
sentirmos puras, dá sentido às nossas vidas, nos confere prestígio, nos eleva
acima do resto dos mortais. Este "amor" não é apenas amor, ele também
é salvação. As princesas de contos de fadas não trabalham: elas são mantidas
pelos príncipes. Em nossa sociedade, ser amada é sinônimo de sucesso social,
ser escolhida por um homem confere valor à mulher, torna-a especial, mãe, senhora.
Este
"amor" nos aprisiona em contradições absurdas: "deveria deixá-lo, mas não posso porque o
amo / porque com o tempo, ele tempo vai mudar / porque ele me ama / porque ele
é o que é". É um "amor" baseado em conquista e sedução, e numa
série de mitos que nos escravizam, como o de que "o amor tudo pode",
ou "uma vez encontrada sua cara-metade, é para sempre”. Este
"amor" nos promete muito, mas nos enche de frustração, nos prende a
seres a quem damos todo o poder sobre nós, nos sujeita a papéis tradicionais, e
nos pune quando não nos ajustamos às regras que nos impõe.
Este
"amor" também nos torna seres dependentes e egoístas, porque usamos
estratégias para conseguir o que queremos, porque nos ensina que é dando que se
recebe, e porque esperamos que o outro "abandone o mundo", tal como
fazemos. É tão grande o "amor" que sentimos que nos tornamos seres amargos
que vomitam censuras e reclamações diariamente. Se alguém não nos ama como amamos
esta pessoa, este "amor" nos vitimiza e nos torna chantagistas
("eu dou tudo para você"). Este "amor" nos leva para o
inferno quando não somos correspondidas, ou quando nos são infiéis, ou quando nos
abandonam: porque quando nos damos conta, estamos sozinhas no mundo, afastadas de
amigas e amigos, familiares ou vizinhos, apêndices de um cara que se sente no
direito de decidir por nós.
Portanto, este
"amor" não é amor. É dependência, é necessidade, é medo da solidão, é
masoquismo, é uma utopia coletiva, mas não é amor.
Amamos patriarcalmente:
o romantismo patriarcal é um mecanismo cultural para perpetuar o patriarcado,
muito mais poderoso do que a lei: a desigualdade se aninha em nossos corações. Amamos
segundo o conceito de propriedade
privada e com base na desigualdade entre homens e mulheres. Nossa
cultura idealiza o amor feminino como um amor incondicional, abnegado,
entregue, submetido e subjugado. As mulheres são ensinadas a esperar e a amar
um homem com a mesma devoção que amam a Deus ou esperam por Jesus Cristo.
As mulheres foram
ensinadas a amar a liberdade do homem, não a delas próprias. As grandes figuras
da política, economia, ciência e arte sempre foram homens. Admiramos os homens e
os amamos na medida em que eles são poderosos; as mulheres, privadas de
recursos econômicos e propriedades, precisam de homens para sobreviver.
A desigualdade
econômica baseada no gênero leva à dependência econômica e emocional das
mulheres. Homens ricos nos são atraentes porque têm dinheiro e oportunidades, e
porque fomos ensinadas desde pequenas que a salvação está em encontrar um
marido. Não nos ensinaram a lutar pela igualdade para termos os mesmos
direitos, mas para estarmos bonitas e conseguir alguém que nos mantenha, nos
ame e nos proteja, ainda que, para isso, tenhamos que ficar sem amigas, ou
juntar-nos a um homem violento, desagradável, egoísta ou sanguinário. O exemplo
mais claro é o dos chefes do narcotráfico: têm todas as mulheres que querem, todos os carros, as drogas e a tecnologia que
desejam, têm todo o poder para atrair meninas sozinhas e sem recursos ou oportunidades.
Essa desigualdade
estrutural entre homens e mulheres é perpetuada pela cultura e pela economia.
Se usufruíssemos dos mesmos recursos econômicos e pudéssemos criar nossos bebês
em comunidade, compartilhando recursos, não teríamos relações baseadas na
necessidade; creio que amaríamos com muito mais liberdade, sem interesses
econômicos envolvidos. E diminuiria drasticamente o número de adolescentes
pobres que acreditam que engravidar vai garantir o amor do macho, ou pelo menos
uma pensão alimentícia durante 20 anos de sua vida.
Os homens também
são ensinados a amar a partir da desigualdade. A primeira coisa que aprendem é
que quando uma mulher se casa com você ela é "sua mulher", algo como "meu
marido", só que pior. Os homens têm duas opções: ou se deixam amar do alto
de sua superioridade (machos alfa) ou ajoelham-se diante da amada em sinal de
rendição (pau-mandado). Os homens parecem manter-se tranquilos enquanto são
amados, já que a tradição lhes ensina que não devem dar demasiada importância
ao amor em suas vidas, nem deixar que as mulheres lhes invadam todos os
espaços, nem expressar publicamente seus afetos.
Toda essa
contenção se rompe quando a esposa decide se separar e seguir sozinha seu próprio
caminho. Como em nossa cultura vivemos o divórcio como um trauma total, as
ferramentas de que os homens dispõem são poucas: podem resignar-se, deprimir-se,
autodestruir-se (alguns cometem suicídio, outros se envolvem em uma briga até a
morte, outros dirigem em alta velocidade na contra-mão), ou reagir com
violência contra as mulheres que dizem amar. É aí que entra em jogo a maldita questão
de "honra", o maior expoente da dupla moral: os homens naturalmente
perseguem as fêmeas, as fêmeas devem morrer assassinadas se cedem a seus próprios
desejos. Para os homens tradicionais, virilidade e orgulho estão acima de
qualquer objetivo: pode-se viver sem amor, mas não sem honra.
Milhões de
mulheres morrem todos os dias por "crimes de honra" nas mãos de seus
maridos, pais, irmãos, amantes, ou por suicídio (forçadas por suas próprias famílias).
As razões: falar com um homem que não seja seu marido, ser estuprada, ou querer
divorciar-se. Um único boato pode matar qualquer mulher. E estas mulheres não
podem levar uma vida própria fora da comunidade: não têm dinheiro nem direitos,
não são livres, não podem trabalhar fora de casa. Não há como escapar.
As mulheres que
têm direitos, no entanto, também se vêem presas em seu casamento ou
relacionamento. Mulheres pobres e analfabetas, mulheres ricas e educadas: a dependência
emocional das mulheres não faz distinção entre classes sociais, etnias,
religiões, idade ou orientação sexual. São muitas em todo o mundo as mulheres que
se submetem à tirania do "suportar por amor."
O amor romântico
é, nesse sentido, uma ferramenta de controle social, e também um anestésico. Ele
nos é vendido como uma utopia alcançável, mas à medida que caminhamos em sua direção,
buscando o relacionamento perfeito que nos faça felizes, descobrimos que a
melhor maneira de relacionar-se é perder a liberdade e renunciar a tudo para
garantir a harmonia conjugal .
Nesta suposta
"harmonia", os homens tradicionais querem esposas tranquilas que os
amem sem pedir nada (ou muito pouco) em troca. Quanto mais se deteriora a autoestima
dessas mulheres, mais se vitimizam e mais dependentes se tornam. Portanto, mais
difícil se torna para elas entender que o amor de verdade não tem nada a ver
com a submissão, nem com o sacrifício, nem com suportar.
A economia, a igreja,
os bancos, a televisão etc. penalizam a solteirice e promovem o casamento
heterossexual, por isso parece que somos obrigadas a sermos felizes ou ir
contra a corrente. Quando o amor acaba ou se rompe, vivemos isso como um
fracasso e como um trauma: ficamos com medo, sentimos desamparo, solidão, as angústias
nos atacam quando nos vemos sós num mundo tão individualista. Quando nos deixam ou
deixamos nosso parceiro, muitas de nós nos desesperamos completamente: gritamos,
batemos pé, chantajeamos, vitimizamos, culpabilizamos, ameaçamos.
Não temos
ferramentas para assumir as perdas. Não sabemos separar nossos caminhos, não sabemos
tratar com carinho quem quer se afastar de nós ou quem encontrou novo parceiro.
Não sabemos como gerir as emoções: por isso é tão frequente a troca de ameaças,
insultos, acusações, vinganças e atos mal intencionados entre os cônjuges.
Também por isso
muitas mulheres são punidas, maltratadas e assassinadas quando decidem se separar
e reiniciar suas vidas. O número de homens que não possuem ferramentas para
lidar com uma separação é muito maior: desde crianças aprendem que devem ser
reis, e que os conflitos são resolvidos com violência. Se não aprendem em casa,
aprendem na televisão: seus heróis fazem justiça por meio da violência, impondo
a sua autoridade. Seus heróis não choram, a não ser que alcancem seu objetivo (como
ganhar um campeonato de futebol, por exemplo).
O que nos ensinam
em filmes, histórias, novelas, séries de televisão é que as garotas esperam pacientemente
por seus heróis, com muito amor e carinho, e estão disponíveis para entregarem-se
ao amor quando eles têm tempo. As modelos de publicidade oferecem seu corpo
como mercadoria, as mocinhas dos filmes
oferecem seu amor como prêmio à coragem masculina. As boas meninas não
abandonam seus maridos. As meninas más que se acreditam donas de seu corpo e de
sua sexualidade, que acreditam ser donas de sua própria vida, ou que se rebelam,
sempre recebem a punição merecida (prisão, doença, ostracismo social ou morte).
As garotas más
não são odiadas apenas pelos homens, mas também pelas mulheres de bem, porque
desestabilizam toda a ordem "harmoniosa" das coisas quando tomam decisões
e rompem laços. Os meios de comunicação muitas vezes nos apresentam casos de
violência contra mulheres como crimes passionais e justificam os assassinatos
ou tortura com expressões como estas: "ela não era uma pessoa muito
normal", "ele tinha bebido", "ela já estava com outra
pessoa "," ele enlouqueceu quando soube”. " E se ele a matou,
foi porque "alguma coisa ela fez." A culpa então recai sobre ela, e a
vítima é ele. Ela meteu os pés pelas mãos e merece castigo, ele merece vingança
para aliviar sua dor e reconstruir o seu orgulho.
A violência é um
componente estrutural das nossas sociedades desiguais, por isso é necessário
que o amor não seja confundido com posse, assim como não se deve confundir a
guerra com a "ajuda humanitária". Em um mundo onde usamos a força
para impor nossa vontade e controlar as
pessoas, onde exaltamos a vingança como um mecanismo para gerir a dor, onde
usamos o castigo para corrigir desvios e a pena de morte para confortar as
vítimas, é necessário mais do que nunca que aprendamos a nos amarmos.
É vital entendermos
que o amor tem que ser baseado em bom tratamento e igualdade. Não apenas com o
cônjuge, mas com toda a sociedade. É fundamental estabelecermos relações igualitárias
em que as diferenças sirvam para nos enriquecermos mutuamente, e não para nos
submetermos uns aos outros. É também essencial empoderar as mulheres para que não
vivamos sujeitas ao amor e também ensinar os homens a lidar com suas emoções, para que possam
controlar sua ira, sua impotência, sua raiva e seu medo, e para que entendam que
nós, as mulheres, não somos objetos pessoais, mas companheiras de vida. Além
disso, temos de proteger as meninas e os meninos que sofrem em casa a violência
machista, porque têm que suportar a humilhação e as lágrimas de sua heroína, a mamãe,
porque têm de suportar os gritos, os tapas e o medo, porque vivem aterrorizados,
porque ficam órfãos, porque seu mundo é um inferno.
É urgente acabar
com o terrorismo machista: na Espanha, ele já matou mais pessoas do que o
terrorismo do ETA. No entanto, as
pessoas ficam mais indignadas com o segundo, vão às ruas para protestar contra
a violência, cuidam de suas vítimas. O terrorismo machista é considerado um
assunto pessoal que afeta determinadas mulheres, por isso muitas pessoas que
ouvem gritos de pedido de socorro não reagem, não denunciam, não intervêm.
Olhando para os números, percebemos que o pessoal é político e também econômico:
a crise acentua o terror, pois muitas não podem considerar a possibilidade de separação,
e o divórcio fica para casais que têm condições econômicas para tanto. Prova
disso é que agora se denunciam menos casos e, por vezes, as mulheres voltam
atrás; com as taxas judiciais adotadas na Espanha, as mulheres mais humildes nem
consideram denunciar: apelar à justiça é coisa para ricas.
É urgente
trabalhar com homens (prevenção e tratamento) e proteger as mulheres e suas crianças.
Devemos empoderar as mulheres, mas também devemos trabalhar com os homens, senão
toda luta será em vão. É necessário promover políticas públicas que tenham um
enfoque integral de gênero, e é necessário que a mídia ajude a gerar uma rejeição generalizada a
esta forma de terror instalada em tantos lares do mundo.
É necessário
fazer uma mudança social e cultural, econômica e sentimental. O amor não pode
ser baseado na propriedade privada e a violência não pode ser uma ferramenta
para a solução de problemas. As leis contra a violência de gênero são muito
importantes, mas devem ser acompanhadas por uma mudança em nossas estruturas
emocionais e sentimentais. Para tornar isso possível, temos que mudar nossa
cultura e promover outros modelos amorosos que não estejam baseados em lutas de
poder para nos dominar ou nos submeter. Outros modelos femininos e masculinos que
não estejam baseados na fragilidade de umas e na brutalidade de outros.
Temos que
aprender a romper com os mitos, a nos desfazer
das imposições de gênero, a dialogar, a desfrutar das pessoas que nos
acompanham no caminho, a nos unir e nos separar
livremente, a nos tratarmos com respeito
e ternura, a assimilar perdas , a construir belos relacionamentos. Temos que
quebrar os círculos de dor que herdamos e reproduzimos inconscientemente, e temos
que libertar as mulheres, os homens e aqueles que não são nem uma coisa nem
outra, do peso da hierarquia, da tirania dos papéis, e da violência.
Temos que
trabalhar muito para que o amor se expanda e a igualdade seja uma realidade, para
além dos discursos. Por isso, este texto é dedicado a todas as mulheres e
homens que lutam contra a violência de gênero em todos os pontos do planeta:
grupos de mulheres contra a violência, grupos de autorreflexão masculina,
autoras e autores que pesquisam e escrevem sobre esse fenômeno, artistas que trabalham
para tornar visível esta cicatriz social, políticas e políticos que trabalham
para promover a igualdade, ativistas que saem às ruas para condenar a
violência, professoras e professores que fazem seu trabalho de conscientização na sala de
aula, ciberfeministas que colhem assinaturas para dar visibilidade a
assassinatos e promover leis, líderes que trabalham nas comunidades para
erradicar o abuso e a discriminação contra as mulheres. A
melhor forma de lutar contra a violência é acabar com a desigualdade e o machismo:
analisando, tornando visível, desconstruindo, denunciando e reaprendendo junt@s.
Coral Herrera Gómez