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29 de diciembre de 2014

A violência de gênero e o amor romântico



Autora: Coral Herrera Gómez

Traductora: Deborah Delage

Traduzido para o português do link original:




O amor romântico é a ferramenta mais potente para controlar e subjugar as mulheres, especialmente nos países onde elas são cidadãs de pleno direito e onde não são, do ponto de vista legal, propriedade de ninguém. Muitos sabem que combinar o afeto com o abuso em relação às mulheres serve para destruir  sua autoestima e causar dependência, e por isso usam o binômio abuso-afeto para que elas se apaixonem perdidamente, e eles, assim, possam domá-las.




Um exemplo é Kalimán, cafetão mexicano que explica como consegue prostituir suas mulheres: escolhe as mais pobres e necessitadas, de preferência aquelas que desejam deixar o inferno em que vivem em casa, ou aquelas que precisam urgentemente de amor, porque estão socialmente isoladas. Os cafetões seguem seu roteiro  perfeitamente: primeiro as enchem de amor, atenção e presentes durante dois meses, fazendo-as acreditar que sãoa mulher de sua vida e que sempre terão dinheiro disponível para  suas necessidades e caprichos. Em seguida, colocam-nas por alguns dias num bordel, de modo que as moças "lhes façam terapia"; se resistem, batem o pé, ficam com raiva, é melhor  deixar que se recuperem sozinhas. Nunca se deve pedir-lhes perdão. É necessário que sofram até que seu orgulho se desmorone e caiam de joelhos, aceitando a derrota. O macho deve ficar firme, mostrar seu desprezo, ir embora em momentos de grande raiva, e nunca ter pena das lágrimas de sua mulher. 

Esta técnica garante que elas atendam a seus desejos e trabalhem para eles na rua ou em prostíbulos; a maioria delas não têm para onde ir e, segundo eles, uma vez que  experimentam o luxo, não querem voltar para a pobreza.

Esta história de terror é muito comum em todo o mundo. Não só os cafetões, mas também inúmeros namorados e maridos tratam as mulheres como éguas selvagens que precisam ser domesticadas para serem  fiéis, submissas e obedientes. Muitos ainda acreditam que as mulheres nasceram para servir e amar aos  homens. E muitas de nós mulheres também ainda acreditamos nisso.
"Por amor", nós, mulheres, nos apegamos a situações de violência, abuso e exploração. "Por amor" nos juntamos a tipos horríveis que, a princípio, parecem príncipes encantados, mas que depois  nos enganam, tiram vantagem de nós, ou vivem às nossas custas. "Por amor" aguentamos insultos, violência, desprezo. Somos capazes de nos humilhar  "por amor", ao mesmo tempo em que nos orgulhamos de nossa intensa capacidade de amar. "Por amor" nos sacrificamos, nos deixamos anular, perdemos nossa liberdade, perdemos nossas redes sociais e afetivas. "Por amor" abandonamos nossos sonhos e objetivos, "por amor" competimos com outras mulheres e nos tornamos  inimigas para sempre, "por amor" deixamos tudo ...

Quando este "amor" chega, nos torna mulheres de verdade, nos dignifica, nos faz nos sentirmos puras, dá sentido às nossas vidas, nos confere prestígio, nos eleva acima do resto dos mortais. Este "amor" não é apenas amor, ele também é salvação. As princesas de contos de fadas não trabalham: elas são mantidas pelos príncipes. Em nossa sociedade, ser amada é sinônimo de sucesso social, ser escolhida por um homem confere valor à mulher, torna-a especial, mãe, senhora.

Este "amor" nos aprisiona em contradições absurdas:  "deveria deixá-lo, mas não posso porque o amo / porque com o tempo, ele tempo vai mudar / porque ele me ama / porque ele é o que é". É um "amor" baseado em conquista e sedução, e numa série de mitos que nos escravizam, como o de que "o amor tudo pode", ou "uma vez encontrada sua cara-metade, é para sempre”. Este "amor" nos promete muito, mas nos enche de frustração, nos prende a seres a quem damos todo o poder sobre nós, nos sujeita a papéis tradicionais, e nos pune quando não nos ajustamos às regras que nos impõe.

Este "amor" também nos torna seres dependentes e egoístas, porque usamos estratégias para conseguir o que queremos, porque nos ensina que é dando que se recebe, e porque esperamos que o outro "abandone o mundo", tal como fazemos. É tão grande o "amor" que sentimos que nos tornamos seres amargos que vomitam censuras e reclamações diariamente. Se alguém não nos ama como amamos esta pessoa, este "amor" nos vitimiza e nos torna chantagistas ("eu dou tudo para você"). Este "amor" nos leva para o inferno quando não somos correspondidas, ou quando nos são infiéis, ou quando nos abandonam: porque quando nos damos conta, estamos sozinhas no mundo, afastadas de amigas e amigos, familiares ou vizinhos, apêndices de um cara que se sente no direito de decidir por nós.
Portanto, este "amor" não é amor. É dependência, é necessidade, é medo da solidão, é masoquismo, é uma utopia coletiva, mas não é amor.

Amamos patriarcalmente: o romantismo patriarcal é um mecanismo cultural para perpetuar o patriarcado, muito mais poderoso do que a lei: a desigualdade se aninha em nossos corações. Amamos  segundo o conceito de propriedade privada e com  base na  desigualdade entre homens e mulheres. Nossa cultura idealiza o amor feminino como um amor incondicional, abnegado, entregue, submetido e subjugado. As mulheres são ensinadas a esperar e a amar um homem com a mesma devoção que amam a Deus ou esperam por Jesus Cristo.

As mulheres foram ensinadas a amar a liberdade do homem, não a delas próprias. As grandes figuras da política, economia, ciência e arte sempre foram homens. Admiramos os homens e os amamos na medida em que eles são poderosos; as mulheres, privadas de recursos econômicos e propriedades, precisam de homens para sobreviver.

A desigualdade econômica baseada no gênero leva à dependência econômica e emocional das mulheres. Homens ricos nos são atraentes porque têm dinheiro e oportunidades, e porque fomos ensinadas desde pequenas que a salvação está em encontrar um marido. Não nos ensinaram a lutar pela igualdade para termos os mesmos direitos, mas para estarmos bonitas e conseguir alguém que nos mantenha, nos ame e nos proteja, ainda que, para isso, tenhamos que ficar sem amigas, ou juntar-nos a um homem violento, desagradável, egoísta ou sanguinário. O exemplo mais claro é o dos chefes do narcotráfico: têm todas as mulheres que querem,  todos os carros, as drogas e a tecnologia que desejam, têm todo o poder para atrair meninas sozinhas e sem recursos ou oportunidades.

Essa desigualdade estrutural entre homens e mulheres é perpetuada pela cultura e pela economia. Se usufruíssemos dos mesmos recursos econômicos e pudéssemos criar nossos bebês em comunidade, compartilhando recursos, não teríamos relações baseadas na necessidade; creio que amaríamos com muito mais liberdade, sem interesses econômicos envolvidos. E diminuiria drasticamente o número de adolescentes pobres que acreditam que engravidar vai garantir o amor do macho, ou pelo menos uma pensão alimentícia durante 20 anos de sua vida.

Os homens também são ensinados a amar a partir da desigualdade. A primeira coisa que aprendem é que quando uma mulher se casa com você ela é "sua mulher", algo como "meu marido", só que pior. Os homens têm duas opções: ou se deixam amar do alto de sua superioridade (machos alfa) ou ajoelham-se diante da amada em sinal de rendição (pau-mandado). Os homens parecem manter-se tranquilos enquanto são amados, já que a tradição lhes ensina que não devem dar demasiada importância ao amor em suas vidas, nem deixar que as mulheres lhes invadam todos os espaços, nem expressar publicamente seus afetos.

Toda essa contenção se rompe quando a esposa decide se separar e seguir sozinha seu próprio caminho. Como em nossa cultura vivemos o divórcio como um trauma total, as ferramentas de que os homens dispõem são poucas: podem resignar-se, deprimir-se, autodestruir-se (alguns cometem suicídio, outros se envolvem em uma briga até a morte, outros dirigem em alta velocidade na contra-mão), ou reagir com violência contra as mulheres que dizem amar. É aí que entra em jogo a maldita questão de "honra", o maior expoente da dupla moral: os homens naturalmente perseguem as fêmeas, as fêmeas devem morrer assassinadas se cedem a seus próprios desejos. Para os homens tradicionais, virilidade e orgulho estão acima de qualquer objetivo: pode-se viver sem amor, mas não sem honra.

Milhões de mulheres morrem todos os dias por "crimes de honra" nas mãos de seus maridos, pais, irmãos, amantes, ou por suicídio (forçadas por suas próprias famílias). As razões: falar com um homem que não seja seu marido, ser estuprada, ou querer divorciar-se. Um único boato pode matar qualquer mulher. E estas mulheres não podem levar uma vida própria fora da comunidade: não têm dinheiro nem direitos, não são livres, não podem trabalhar fora de casa. Não há   como escapar.
As mulheres que têm direitos, no entanto, também se vêem presas em seu casamento ou relacionamento. Mulheres pobres e analfabetas, mulheres ricas e educadas: a dependência emocional das mulheres não faz distinção entre classes sociais, etnias, religiões, idade ou orientação sexual. São muitas em todo o mundo as mulheres que se submetem à tirania do "suportar por amor."

O amor romântico é, nesse sentido, uma ferramenta de controle social, e também um anestésico. Ele nos é vendido como uma utopia alcançável, mas à medida que caminhamos em sua direção, buscando o relacionamento perfeito que nos faça felizes, descobrimos que a melhor maneira de relacionar-se é perder a liberdade e renunciar a tudo para garantir a harmonia conjugal .

Nesta suposta "harmonia", os homens tradicionais querem esposas tranquilas que os amem sem pedir nada (ou muito pouco) em troca. Quanto mais se deteriora a autoestima dessas mulheres, mais se vitimizam e mais dependentes se tornam. Portanto, mais difícil se torna para elas entender que o amor de verdade não tem nada a ver com a submissão, nem com o sacrifício, nem com suportar.

A economia, a igreja, os bancos, a televisão etc. penalizam a solteirice e promovem o casamento heterossexual, por isso parece que somos obrigadas a sermos felizes ou ir contra a corrente. Quando o amor acaba ou se rompe, vivemos isso como um fracasso e como um trauma: ficamos com medo, sentimos desamparo, solidão, as angústias nos atacam quando nos vemos sós num  mundo tão individualista. Quando nos deixam ou deixamos nosso parceiro, muitas de nós nos desesperamos completamente: gritamos, batemos pé, chantajeamos, vitimizamos, culpabilizamos, ameaçamos.
Não temos ferramentas para assumir as perdas. Não sabemos separar nossos caminhos, não sabemos tratar com carinho quem quer se afastar de nós ou quem encontrou novo parceiro. Não sabemos como gerir as emoções: por isso é tão frequente a troca de ameaças, insultos, acusações, vinganças e atos mal intencionados entre os cônjuges.

Também por isso muitas mulheres são punidas, maltratadas e assassinadas quando decidem se separar e reiniciar suas vidas. O número de homens que não possuem ferramentas para lidar com uma separação é muito maior: desde crianças aprendem que devem ser reis, e que os conflitos são resolvidos com violência. Se não aprendem em casa, aprendem na televisão: seus heróis fazem justiça por meio da violência, impondo a sua autoridade. Seus heróis não choram, a não ser que alcancem seu objetivo (como ganhar um campeonato de futebol, por exemplo).

O que nos ensinam em filmes, histórias, novelas, séries de televisão é que as garotas esperam pacientemente por seus heróis, com muito amor e carinho, e estão disponíveis para entregarem-se ao amor quando eles têm tempo. As modelos de publicidade oferecem seu corpo como mercadoria,  as mocinhas dos filmes oferecem seu amor como prêmio à coragem masculina. As boas meninas não abandonam seus maridos. As meninas más que se acreditam donas de seu corpo e de sua sexualidade, que acreditam ser donas de sua própria vida, ou que se rebelam, sempre recebem a punição merecida (prisão, doença, ostracismo social ou morte).

As garotas más não são odiadas apenas pelos homens, mas também pelas mulheres de bem, porque desestabilizam toda a ordem "harmoniosa" das coisas quando tomam decisões e rompem laços. Os meios de comunicação muitas vezes nos apresentam casos de violência contra mulheres como crimes passionais e justificam os assassinatos ou tortura com expressões como estas: "ela não era uma pessoa muito normal", "ele tinha bebido", "ela já estava com outra pessoa "," ele enlouqueceu quando soube”. " E se ele a matou, foi porque "alguma coisa ela fez." A culpa então recai sobre ela, e a vítima é ele. Ela meteu os pés pelas mãos e merece castigo, ele merece vingança para aliviar sua dor e reconstruir o seu orgulho.

A violência é um componente estrutural das nossas sociedades desiguais, por isso é necessário que o amor não seja confundido com posse, assim como não se deve confundir a guerra com a "ajuda humanitária". Em um mundo onde usamos a força para impor  nossa vontade e controlar as pessoas, onde exaltamos a vingança como um mecanismo para gerir a dor, onde usamos o castigo para corrigir desvios e a pena de morte para confortar as vítimas, é necessário mais do que nunca que aprendamos a nos amarmos.

É vital entendermos que o amor tem que ser baseado em bom tratamento e igualdade. Não apenas com o cônjuge, mas com toda a sociedade. É fundamental estabelecermos relações igualitárias em que as diferenças sirvam para nos enriquecermos mutuamente, e não para nos submetermos uns aos outros. É também essencial empoderar as mulheres para que não vivamos sujeitas ao amor e também ensinar os homens a  lidar com suas emoções, para que possam controlar sua ira, sua impotência, sua raiva e seu medo, e para que entendam que nós, as mulheres, não somos objetos pessoais, mas companheiras de vida. Além disso, temos de proteger as meninas e os meninos que sofrem em casa a violência machista, porque têm que suportar a humilhação e as lágrimas de sua heroína, a mamãe, porque têm de suportar os gritos, os tapas e o medo, porque vivem aterrorizados, porque ficam órfãos, porque seu mundo é um inferno.

É urgente acabar com o terrorismo machista: na Espanha, ele já matou mais pessoas do que o terrorismo do  ETA. No entanto, as pessoas ficam mais indignadas com o segundo, vão às ruas para protestar contra a violência, cuidam de suas vítimas. O terrorismo machista é considerado um assunto pessoal que afeta determinadas mulheres, por isso muitas pessoas que ouvem gritos de pedido de socorro não reagem, não denunciam, não intervêm. Olhando para os números, percebemos que o pessoal é político e também econômico: a crise acentua o terror, pois muitas não podem considerar a possibilidade de separação, e o divórcio fica para casais que têm condições econômicas para tanto. Prova disso é que agora se denunciam menos casos e, por vezes, as mulheres voltam atrás; com as taxas judiciais adotadas na Espanha, as mulheres mais humildes nem consideram denunciar: apelar à justiça é coisa para ricas.

É urgente trabalhar com homens (prevenção e tratamento) e proteger as mulheres e suas crianças. Devemos empoderar as mulheres, mas também devemos trabalhar com os homens, senão toda luta será em vão. É necessário promover políticas públicas que tenham um enfoque integral de gênero, e é necessário que a  mídia ajude a gerar uma rejeição generalizada a esta forma de terror instalada em tantos lares do mundo.

É necessário fazer uma mudança social e cultural, econômica e sentimental. O amor não pode ser baseado na propriedade privada e a violência não pode ser uma ferramenta para a solução de problemas. As leis contra a violência de gênero são muito importantes, mas devem ser acompanhadas por uma mudança em nossas estruturas emocionais e sentimentais. Para tornar isso possível, temos que mudar nossa cultura e promover outros modelos amorosos que não estejam baseados em lutas de poder para nos dominar ou nos submeter. Outros modelos femininos e masculinos que não estejam baseados na fragilidade de umas e na brutalidade de outros.

Temos que aprender a romper com os mitos, a nos desfazer  das imposições de gênero, a dialogar, a desfrutar das pessoas que nos acompanham no caminho, a nos unir  e nos separar  livremente, a nos tratarmos com respeito e ternura, a assimilar perdas , a construir belos relacionamentos. Temos que quebrar os círculos de dor que herdamos e reproduzimos inconscientemente, e temos que libertar as mulheres, os homens e aqueles que não são nem uma coisa nem outra, do peso da hierarquia, da tirania dos papéis, e da violência.


Temos que trabalhar muito para que o amor se expanda e a igualdade seja uma realidade, para além dos discursos. Por isso, este texto é dedicado a todas as mulheres e homens que lutam contra a violência de gênero em todos os pontos do planeta: grupos de mulheres contra a violência, grupos de autorreflexão masculina, autoras e autores que pesquisam e escrevem sobre esse fenômeno, artistas que trabalham para tornar visível esta cicatriz social, políticas e políticos que trabalham para promover a igualdade, ativistas que saem às ruas para condenar a violência, professoras e professores que fazem  seu trabalho de conscientização na sala de aula, ciberfeministas que colhem assinaturas para dar visibilidade a assassinatos e promover leis, líderes que trabalham nas comunidades para erradicar o abuso e a discriminação contra as mulheres. A melhor forma de lutar contra a violência é acabar com a desigualdade e o machismo: analisando, tornando visível, desconstruindo, denunciando e reaprendendo junt@s.

Coral Herrera Gómez